Sem câmera, sem fotógrafo e sem identidade: o colapso do senso comum visual na era da IA
- Leo Saldanha

- 8 de out.
- 4 min de leitura
Retratos gerados por inteligência artificial estão se tornando o novo padrão do imaginário digital. Mas, por trás do fascínio tecnológico, surge um efeito silencioso: a cópia da cópia, o "eu também" estético e a erosão do que entendemos como fotografia.

Você já deve ter visto. Talvez tenha até pausado por alguns segundos.
Um retrato impecável: fundo escuro, luz lateral cinematográfica, olhar direcionado. O tipo de imagem que parece profissional, que parece cara, que parece real.
Até que você lê a legenda: "Sem câmera. Sem estúdio. Sem fotógrafo. Tudo feito por IA. Em menos de 1 minuto."
E aí vem o desconforto.
Para o público geral, é fascínio: a promessa de um resultado antes inacessível agora ao alcance de um clique. Para fotógrafos, é algo diferente: um espelho invertido, refletindo não apenas uma tecnologia, mas uma pergunta incômoda: se qualquer um pode gerar isso, o que ainda faz de mim necessário?
Mas o problema não está na resposta. Está na pergunta errada.
Porque o que está em jogo aqui não é a disputa entre fotógrafos e inteligência artificial é algo muito mais profundo: a quebra do senso comum visual, o pacto invisível que durante décadas sustentou o valor, o significado e a confiança na fotografia.
E quando esse pacto se rompe, tudo muda: preço, percepção, propósito.
1. A nova estética do "eu também"

Nos últimos meses, multiplicaram-se nas redes sociais imagens com o mesmo padrão: fundo escuro, luz lateral cinematográfica, expressão neutra e a legenda provocativa.
A frase resume tudo: "Sem câmera. Sem estúdio. Sem fotógrafo. Tudo feito por IA. Em menos de 1 minuto."
O público reage com admiração. Os fotógrafos, com desconforto.
O que parecia apenas mais uma tendência de IA se transformou em uma nova categoria de imagem: o retrato genérico perfeito. Uma fórmula visual reproduzida por quem busca o mesmo resultado e, ironicamente, o mesmo destaque.
Mas há um problema aí: quando todo mundo busca a mesma estética, ninguém é mais reconhecível.
2. A ironia da banana

A IA que mais influencia essa revolução se chama Nano Banana e talvez isso diga mais sobre o mercado do que parece.
A banana é a fruta mais popular do mundo: acessível, familiar, barata. É o símbolo do que é comum.
E, no entanto, a IA que leva esse nome é a que mais inspira outras IAs, impulsiona modas visuais e dita o tom das novas "fotografias" geradas.
A estética da banana é o novo padrão global. Bonita, mas banal.
3. A reação dos fotógrafos

Alguns profissionais estão reagindo mostrando retratos reais, produzidos com câmera, luz e direção e comparando o resultado com o das IAs.
É uma forma de reafirmar o valor humano e técnico do ofício.
Mas, mais do que disputar espaço com a tecnologia, o que os fotógrafos precisam é reconquistar o território da intenção.
A IA pode simular estética, mas não propósito. O que diferencia um retrato verdadeiro hoje é o motivo pelo qual ele existe, a história por trás do olhar, a conexão entre fotógrafo e retratado, o contexto de onde a imagem nasce.
4. O colapso do senso comum

Steven Pinker, em seu novo livro Common Knowledge, explica que o "senso comum" não é apenas o que todos sabem, mas o que todos sabem que todos sabem.
É o acordo invisível que sustenta a comunicação e a confiança social.
Durante décadas, todos sabiam o que era uma fotografia. Agora, não mais.
A IA rompeu esse pacto de compreensão coletiva. Quando o público já não distingue o real do gerado, o valor simbólico da fotografia entra em crise, não porque perdeu técnica, mas porque perdeu consenso.
E isso muda tudo: preço, percepção e propósito.
5. O novo luxo visual

A autenticidade voltou a ser o bem mais raro do mundo digital.
No cenário de abundância sintética, o luxo é ser real. O retrato verdadeiro: imperfeito, humano, contextual... torna-se um ato de resistência estética.
Como escrevi no episódio Autenticidade: o novo luxo visual na era da IA, o desafio agora não é provar que algo é real, mas torná-lo inconfundível.
E isso não depende de equipamento, mas de identidade.
6. A promessa do tutorial

E a promessa final é reveladora: "É só copiar e colar o prompt"
Não basta gerar a imagem: é preciso ensinar outros a gerarem a mesma.
O ciclo se fecha: da cópia, nasce o tutorial da cópia. E assim, o "eu também" se transforma em modelo de negócio.

O "sem câmera, sem fotógrafo" é o novo espelho da nossa época: uma promessa de facilidade que reflete a pressa de se parecer com os outros.
Mas enquanto a IA repete padrões, o fotógrafo pode fazer o que nenhuma máquina consegue... criar sentido.
A diferença não está em quem gera a imagem, mas em quem dá significado a ela.
A pergunta agora é: você ainda sabe explicar por que sua fotografia existe?
🔗 Leitura complementar: Autenticidade — o novo luxo visual na era da IA
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